Num filme de vários personagens, ou em histórias de grandes famílias, os meus olhos recaem sempre mais no chamado "quiet one", aquele que fala pouco e sente muito, aquele que tem muito para dar, e fá-lo discretamente, por vezes com grande sacrifício, sofrimento ou resguardo.
Os filmes de Wes Anderson são todos filmes sobre famílias, e sobre todos os momentos que fazem uma família: as coisas que não se dizem, as coisas que se escondem e aquilo que acabamos por levar connosco dentro do seu espaço e tempo. Um filme de Wes Anderson é a possibilidade de voltarmos sempre a isso: à nossa pequena tenda onde fomos felizes quando éramos crianças, e onde estamos agora a ouvir os nossos discos, olhando para os nossos livros, enquanto que um irmão nos vem chatear com um trauma recalcado e nós só conseguimos pensar no nosso trauma presente - o nosso amor, a ternura de se amar e de não conseguir aquilo que tínhamos sonhado com poucos anos, uma rejeição ou uma separação compreendida, porque agora somos adultos. Ser adulto é saber aceitar isso e viver com essa tristeza. E como os filmes de Wes Anderson nos mostram, ser adulto é uma coisa feia.
Tudo isto a propósito de uma coisa, entra outras que compõem a realidade e projecção da nossa vida: descobrir que o Hôtel Raphaël, no 16ème arrondissement em Paris, serviu para filmar todas as cenas de Hotel Chevalier, a curta que precede The Darjeeling Limited. Nestes dois filmes, Jack luta diariamente com uma música na sua cabeça: Where do you go to my lovely?, que o leva a passear por todos os sítios do seu amor: o Boulevard Saint-Michel, os quadros de Picasso, o cinema de Marlene Dietrich, Paris e os cafés, etc, etc. O rosto dele tem todo o ar que se espera, o seu corpo regressa em Hotel Chevalier antes da partida de Jack para a Índia, está magoado por nódoas negras e pedidos de esquecimento do passado. Jack perdoa tudo e deixa-se perder de novo para esse amor. Já na Índia, Jack passeia-se com ele na cabeça, deixa a música ecoar na carruagem e nos passos que dá em terra sagrada, quase que se deixa sacrificar por uma nova vida e um novo corpo, até perceber que nunca deixará de ter o seu, e aceitar-se enquanto tal, seja o que isso significar.
Dos anos que vivi em Paris, e vivi todos os dias, passei sempre à frente desse hotel, o Hôtel Raphaël, que ficava em frente à minha estação de metro diária, depois de passar pela ponte do metro que passa por cima do Sena, tantas vezes filmada por Godard. Foram lá filmadas essas cenas de passado e presente, com tudo o que um grande amor tem e tudo aquilo que comporta, desde beijos a nódoas negras. Tal como Jack, sigo para uma viagem e ainda passo em frente a esse hotel todos os dias. No fim dessa viagem, sigo de passos mais seguros, aguardando o que terei como vivendo com o que tive, como no fim do filme de Anderson, ou como no fim de um filme do mestre Satyajit Ray, sempre um princípio.