16.2.10

O inquilino

Os filmes de Polanski trazem-me um sentimento muito familiar, algo com que cresci e que habitualmente se justifica com o facto de se ter tido uma educação católica: que algo está profundamente errado no espaço onde nos encontramos. Hoje em dia, e com maior distância, associo alguns episódios da minha infância a um tremendo sentido de culpa, de medo do risco e de ultrapassar certos limites da nossa educação (não por se ter pais tiranos, mas porque em criança se vive no domínio da imaginação). Cada acto teria um consequência, e a possibilidade dessa consequência, de uma possibilidade de prazer ou possibilidade de punição, trazia já por si o sentimento de culpa por algo que não sabíamos se deveríamos fazer (algo talvez mais de Hitchcock do que Polanski, porventura).
Mas se esses dois cineastas não estão assim tão distantes um do outro, será talvez por ambos tocarem nesses sentimentos bem assentes da nossa infância. Um filme de Polanski leva-me muitas vezes às raízes do instinto maternal sobre o qual as crianças vivem e que pediremos com raiva enquanto adultos. Haverá algo mais conciliador e pacificador do que ver Mia Farrow, em Rosemary's Baby, depois de lutar contra a conspiração dos seus vizinhos satânicos e recusar-se a aceitar a encarnação do diabo no seu filho recém-nascido, baloiçando o seu berço após o líder do culto chamá-la a ele, pondo-lhe como palavras na alma "aren't you his mother"? Ou algo mais terrível mas verdadeiro em ver Polanski, actor em The Tenant, bater numa criança porque esta precisou de chamar a sua mãe num choro sonoro e convulsivo, talvez por não ter ele ninguém a quem chamar na sua vida adulta, ainda rodeado de pesadelos, monstros e quartos escuros?
Vivi a minha infância e a adolescência entre várias casas, sendo que quase todas elas se destinavam à minha passagem e de outras pessoas. Nunca conheci totalmente nenhuma delas e sempre se vivia numa função de representação no meio de visitas e vizinhos. O desconforto e a suspeita entre as paredes das casas de Polanski é o pesadelo e realidade de qualquer inquilino, locais onde a nossa identidade e a visão dos outros nos cercam. Em criança nunca andei nos corredores, fi-los todos sempre a correr. Hoje em dia sento-me no meio das paredes de um quarto e são essas as imagens que me cercam. Agora como adulto, o risco está passado e serão elas que me acordaram da noite para o dia e dos dias para a noite.

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