25.1.10

Kapurush

Os filmes de Satyajit Ray cingem-se, geralmente, sobre os momentos mais tocantes de uma vida, tanto os mais bonitos como os mais difíceis. São filmes que vêm de episódios que constroem e marcam as vidas dos seus personagens, momentos que definem o seu crescimento e as alturas em que nos sentimos obrigados a crescer ou a mudar. Coisas simples e banais porque acontecem em todas as vidas - mas simples e banais são as coisas mais marcantes e as mais difíceis de uma vida. O princípio de um caminho, o fim de uma relação, um adeus a alguém próximo, ou sabendo que por muitos passos e muita solidão, nunca estaremos sozinhos nos caminhos por onde entramos.
Muitas vezes, Ray concentra-se na qualidade mais difícil de manter perante as incertezas flutuantes, próprias da nossa natureza e insegurança: a coragem. A tradução de Kapurush - um dos seus "pequenos" filmes centrados em episódios específicos de uma vida -, é "The Coward", palavra sempre forte demais para a análise racional dos nossos actos. Por detrás das nossas inseguranças, é sempre fácil encontrar o motivo que nos impede para agirmos sozinhos ou cedermos perante o outro. Tanto um compromisso de vida como um compromisso de um dia (um gesto, um beijo) implicam a assunção da coragem de viver. Nesse filme, o seu personagem revê a mulher que rejeitou por não ter a coragem de lhe dar a sua vida em troca da dela, encontrando-a mais tarde, e por acaso, no seu lar, junto do seu novo marido, imagem contrária à promessa que ele próprio teria anteriormente alimentado. Sentindo-se culpado e sozinho, decide pedir-lhe um regresso, um esquecimento da sua indecisão e um abandono do seu lar, e quando antes pedia-lhe tempo, diz-lhe agora que poderá dar-lhe todo aquele que não tem.
O final é triste e choca no título seco do seu filme. Ao contrário de uma natureza mais clássica do cinema, Ray não deixa qualquer porta aberta - fecha-a na cara do espectador e espeta um "fim" no rosto espantado e perdido do seu protagonista. A sensação do tempo ter passado acentua-se com o som do comboio que chega e que deverá levá-lo de volta à sua cidade, a terra que não perdoa e que não pensa nos sentimentos e desejos que nós criamos. Por um lado (o do protagonista), diz-nos que o tempo pode ser cruel e fechar-se perante nós, tornando-nos rendidos ao esquecimento, fruto de uma recusa da aprendizagem da vida. Por outro lado (o da protagonista), diz-nos que perante a cobardia da outra pessoa, resta-nos a nós a coragem de conseguir seguir em frente e viver uma outra vida. No entanto, essa suposta segurança acaba por tornar-se em frieza absoluta, transformando-se numa indiferença já por si cobarde. Assim, e perante o episódio mais humano que alguém poderá alguma vez ter - viver e saber viver com aquilo que fica e aquilo que virá -, fica um balanço abrupto e de choque. Talvez seja esse o maior perigo da cobardia - a mágoa, o rancor, a indiferença. No cinema de Ray, e mesmo nos episódios mais duros, a ternura com que (nos) aborda será sempre um veículo de catarse ou salvação. Aceitemos a natureza como se o mundo nos pertencesse - é o que nos dizem certas sequências da Ray. A cobardia será tomá-lo sem o respeito e a ternura que a vida nos pede. Aí repousará, porventura, a nossa segurança.

Blog Archive